Tradutor Traidor

Creio que há um ditado romano com esse sentido. Implico um pouco com traduções, especialmente do espanhol para o português. Todo brasileiro acha que sabe espanhol e creio que se passa o mesmo com os portugueses. Além disso, é conhecida a baixa remuneração dos profissionais que se dedicam ao ofício. Sinto-me mais confiante lendo Borges ou Fuentes no original porque traduzir Huarache por chinelo ou sandália de dedo ou, o que é pior, "sandália de borracha com tiras entre os dedos" dói no ouvido e na alma.
O livro chama-se Notícias do Paraíso, editado pela Gradiva, Lisboa, 3a. ed., junho de 2000. O título original em inglês é Paradise News, 1991, tradução de Carlos Grifo Babo com revisão de Maria do Rosário Pedreira. O autor é David Lodge, um professor de literatura da Universidade de Birminghan que andou faturando o Express Book of the Year. Seu romance conta a história de um padre descendente de irlandeses, nascido nos arredores de Londres, com fortes pendores acadêmicos desde a juventude, professor respeitado de teologia e filosofia, que veio a tornar-se agnóstico na meia idade, acabando por descobrir as mulheres e os segredos do Havaí.
Uma amiga de minha mulher emprestou-lhe o livro dizendo que adorava o autor. Curioso, comecei a folhear o volume e depois a ler, a partir da segunda parte, parando na p. 170 quando me deu na telha de aproveitar o tema para este blog. Inicialmente, pareceu-me que o tradutor se havia inspirado numa versão espanhola, ao deparar com frases do tipo: "comprou um livro há já muito tempo para apontar receitas" e pela insistência em usar o infinitivo quando nós no Brasil declinamos o verbo. (está a recuperar; havia de ir a correr dizer-lhe, em vez de está recuperando e havia de ir correndo dizer-lhe. Estava pronto para malhar a tradução quando me dei conta que o texto era pura prosa portuguesa lisboeta moderna, um português a merecer tradução para o brasileiro ou, pelo menos, um glossário, tantas são os termos e as expressões típicas. Vendedores de gelados (sorvete); quando carrego nessa coisa (aperto); descobrir no frigorífico (geladeira); comer em andamento (andando); fato de banho (traje de banho); disse-me à laia de explicação (à guisa); grupo de miudos escuteiros (rapazes escoteiros); tomar duche na casa de banho (chuveirada no banheiro); travões do comboio (freio do trem); precisa de descansar, aparecer a um domingo, e por ai vai... Na página 166 o autor faz a seguinte citação "Lévy-Strauss (sic - o correto é com i) diz em algum lugar que o "estudante que escolhe a profissão de ensinar não se despede do mundo da infância; pelo contrário, está a tentar permanecer nele."".Aí pensei: mais uma tarefa para os meus alunos.

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