Traído pela memória

A memória as vezes nos trai guardando termos invertidos de uma frase ou simplesmente inventando coisas que não lemos nem ouvimos. Foi o que aconteceu comigo. Tinha certeza quase absoluta de que Lévi-Strauss havia dito em algum lugar que "o sociológico vem antes do psicológico" e o que acabei achando em O Pensamento Selvagem foi "L'ethnologie est d'abord une psychologie" (p. 174).
Para ficar na mesma área e com o mesmo autor, guardei uma lembrança de ter lido que ele voltara a ouvir Chopin, depois de muitos anos, e descobrira feliz que, além de rivalizar com Debussy, o compositor polonês era romântico. Relendo Tristes Trópicos verifiquei que as colocações quando menos são algo diferentes. Viajando pelo interior do Brasil em pesquisa de campo, obcecava-lhe a lembrança da melodia do Estudo número 3, opus 10, de Chopin.

Penso que não é inutil transcrever suas palavras: "Por que Chopin, a quem minhas preferências não me conduziam especialmente? Criado no culto wagneriano, eu descobrira Debussy em data bem recente, inclusive depois que as Núpcias, ouvidas na segunda ou terceira apresentação, tinham me revelado em Stravinski um mundo que me parecia mais real e mais sólido do que os cerrados do Brasil central, fazendo desmoronar meu universo musical anterior. Mas no momento em que saí da França, era Peléias que me fornecia o alimento espiritual de que eu necessitava; então, por que Chopin e sua obra mais banal impunham-se a mim no sertão? Mais ocupado em resolver esse problema do que em me dedicar às observações que me teriam justificado, eu dizia a mim mesmo que o progresso que consiste em passar de Chopin a Debussy talvez seja amplificado quando ocorre no sentido contrário. As delícias que me faziam preferir Debussy, agora eu as saboreava em Chopin, mas de um modo implícito, ainda incerto, e tão discreto que eu não as percebera no início e fora direto para a sua manifestação mais ostensiva. Realizava um duplo progresso: ao aprofundar a obra do compositor mais antigo, eu lhe reconhecia belezas destinadas a permanecerem ocultas para quem não tivesse, primeiro, conhecido Debussy. Eu gostava de Chopin por excesso, e não por escassez, como é o caso de quem nele parou sua evolução musical. Por outro lado, para favorecer dentro de mim o surgimento de certas emoções, já não precisava de excitação completa: o sinal, a alusão, a premonição de certas formas bastavam.
Léguas após léguas, a mesma frase melódica cantava em minha memória sem que eu pudesse afastá-la. Nela eu descobrira permanentemente novos encantos. Muito frouxa no início, parecia-me que ia progressivamente enroscando seu fio, como para dissimular o final que a concluiria. Essa transformação da flor em fruto ia ficando inextricável, a ponto de indagarmos que solução ela adotaria; de repente, uma nota resolvia tudo, e tal escapatória parecia ainda mais ousada do que o movimento comprometedor que a precedera, exigira e possibilitara; ao escutá-la, os temas anteriores elucidavam-se com um novo significado: sua busca já não era arbitrária, e sim a preparação para essa saída insuspeita. Seria então isso a viagem? Uma exploração dos desertos de minha memória, e não tanto daqueles que me rodeavam? " ( in Tristes Trópicos, Editora Cia. das Letras, S.Paulo, 1999, p. 357 (tradução de Rosa Freire D'aguiar)).

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