A Casa das Sete Mulheres e os Centauros Avezados

Por José Vieira Loguercio*

"Sorri com tranqüilidade/ quando alguém te calunia/ quem sabe o que não seria/ se ele dissesse a verdade." Mário Quintana

A minissérie "A Casa das Sete Mulheres", que a Globo apresenta, indica que os versos do Poeta riograndense valem para vivos e mortos. Não importa se atropela fatos históricos e mistura paisagens. Até porque, quem realmente conhece o Rio Grande do Sul?

O que importa, é trazer à tela famosa, uma epopéia decisiva na consolidação do gaúcho e na sua contribuição para a formação da Nação Brasileira.

A Revolução Farroupilha (1835-1845) lançou as bases do que viria a ser a singularidade política do Rio Grande do Sul e seu papel na formação do Estado Nacional.

Historicamente, foi diferente a maneira de fazer política do Chuí ao Mampituba da praticada do Mampituba ao Oiapoque. Os traços fundamentais que distinguiram o Rio Grande do Sul dos demais estados da federação são: sua peculiar composição de classes; a constante divisão das elites (cuja base foi a burguesia gaúcha e a burguesia colona),; a polarização partidária em dois blocos; o protagonismo de seu povo (as próprias elites arrastavam o povo para resolver suas contendas); e a defesa por mais de 300 anos de fronteiras "vivas" que exigiu concentração de tropas e deu origem às Estâncias.

A elite gaúcha, diferentemente da do restante do Brasil, nunca foi cordial, como diria Sérgio Buarque de Holanda, mas hospitaleira. Ou seja, o que é meu é meu e o que é público é meu também vale para o restante da elite brasileira, não para a gaúcha. Aqui, desde os Farrapos foi forte a separação entre o público e o privado. Aqui, a burguesia gaúcha se firmou através de uma revolução. Aqui, as diferenças políticas foram resolvidas por conflitos.

A burguesia gaúcha surgiu de uma forma especial de propriedade criada pela Coroa Portuguesa — a Estância. Terras medindo 13 mil ha eram doadas a senhores que deveriam povoá-las e defender a fronteira. Depois dos bandeirantes terem destruído as reduções e as missões jesuíticas — aí por volta de 1640 e em fins do séc. XVII — que possuíam rebanho bovino e cavalar amansado, este se esparramou pelas coxilhas e se tornou chimarrão (gado selvagem). Entre 1632 a 1732 esses rebanhos se espalharam desde a fronteira até o litoral.

Com a descoberta do ouro em Minas Gerais (1690) foi possível ao RS fornecer animais de transporte e carga e, depois, o charque. Após o Tratado de Madrid (no qual Portugal e Espanha trocavam os Sete Povos das Missões pela Colônia de Sacramento), a Coroa Portuguesa, estimulou as Estâncias. Aí se praticava a pecuária extensiva e eram os estancieiros os responsáveis pela segurança da Fronteira. Surgem Bagé, São Gabriel, Alegrete, Santa Maria. Com a Guerra Cisplatina (1821-1828) tem desenvolvimento o Ciclo do Charque. As principais charqueadas se instalaram por volta de 1780, assumindo importância o porto de Rio Grande e a cidade de Pelotas.

Aí estão as raízes de Bento Gonçalves, David Canabarro, General Neto e os demais líderes farroupilha. A Estância nunca foi Casa Grande. Para manter a peonada (os pelos duros, mistura de índio, negro, português e espanhol, com predomínio dos primeiros), o estancieiro tinha que ser hospitaleiro, pois seus peões também tinham facões e poderiam se retirar coxilha à fora, com cavalo e gado. Euclides da Cunha compara o gaúcho com o sertanejo — embora a distância e o clima, o tipo de atividade era similar.

A República do Piratini foi a mais elevada forma de uma organização pré-estatal, que teve seus antecedentes nos mercadores da fronteira e nas reduções e missões jesuíticas. A "pacificação", comandada por Duque de Caxias, contemplou o maior interesse da burguesia gaúcha — burguesia porque não se consegue o charque sem extrair mais valia —, a retirada do imposto sobre esse produto. A burguesia gaúcha produziu lideranças como Gaspar da Silveira Martins (autor da frase que Diógenes Arruda gostava: "Idéias não são metais que se fundem") e Assis Brasil.

Sua decadência advém com a Geladeira, que esvaziou a importância do charque. Hoje ela é um fantasma de si mesma. Muito mais para gigolô de vaca, como dizia o general Figueiredo. Tem início o longo período de decadência da chamada metade sul do Rio Grande do Sul. Com o arroz, ela vive do arrendamento da terra. Ou seja, a parte sul continua se desenvolvendo de forma prussiana (aburguesamento da grande propriedade).

Durante o Império, a parte norte foi povoada pela imigração de origem alemã e italiana, basicamente. Esses sem terra, fruto da unificação capitalista daquelas nações, eram "exportados" para o Brasil e, aqui no RS, recebiam uma colônia de terra (variou de 76 ha até 12,5 ha). Algo inédito em todo o país, o parcelamento da terra, que é a essência da via francesa de penetração do capitalismo no campo. De tal sorte que, se havia 100 mil pequenas propriedades rurais em 1940, ultrapassavam 400 mil em 1984.

Essas pequenas propriedades necessitavam de arame, pregos, tinta, roupa, móveis. Surge a Burguesia Colona. Aí está a origem dos Gerdau, Renner, Graziotin, e quejandos. Os grandes líderes dessa burguesia foram Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros.

Enquanto a burguesia gaúcha defendia uma democracia anglo-americano, com ênfase no direito individual, a burguesia colona defendia uma democracia franco-européia, com ênfase no direito social.

Depois da burguesia colona vencer a guerra civil de 1883-85, na qual morreram mais de 1% da população do RS, pôde aplicar seu ideário. Mas Júlio de Castilhos insistia que tinham que resgatar o gauchismo. E após a 2ª guerra Mundial, quando estudantes secundaristas do Colégio Júlio de Castilhos, aproveitando o translado dos restos mortais de Gaspar da Silveira Martins, criam o 1º CTG (Centro de Tradições Gaúchas - 35), uma homenagem à epopéia farroupilha, a colonada, para se livrar da pecha de nazi-fascista, incorpora o gauchismo e em pouco tempo surgiram milhares de CTG's, hoje esparramados Brasil afora.

As duas burguesias travaram outra guerra civil em 1923. Posteriormente, foram unificadas pelo grupo de Getulio Vargas, Osvaldo Aranha, e outros, que formulou o 1º Projeto Nacional após dirigir a Revolução de 1930 que, entre várias medidas centralizadoras, mandou queimar as bandeiras das províncias para que avultasse a Bandeira Nacional. Aliás, Getúlio Vargas já afirmava em 1927: "Ao invés da declaração dos direitos do homem, com que a Revolução Francesa consagrou a vitória do individualismo, terá de sobrevir (...) a declaração dos direitos da sociedade."

Quase um século antes, em 11 de setembro de 1836, após a vitória nos campos de Seival, Antônio de Souza Neto (o gen. Neto) proclama: "Camaradas! Nós que compomos a Primeira Brigada do Exército Liberal, devemos ser os primeiros a proclamar, como proclamamos, a independência desta província, a qual fica desligada das demais do Império e forma um Estado livre e independente, com o título de República Riograndense...".

Leve-se em conta que entre os lugares que se reuniam os revolucionários em 1935, estava a casa do cônsul norte-americano. Ora, esta proclamação consagrava uma conquista revolucionária da democracia liberal burguesa, pois resultava dos campos de batalha. O jovem Garibaldi aí bebeu sua compreensão de que o povo tinha que participar revolucionariamente na formação das Nações, embora a hegemonia então da burguesia.

Também Júlio de Castilhos e seus comandados, ao vencerem a guerra civil de 1883-85 contra as tropas de Gaspar da Silveira Martins, executou um republicanismo mais radical que o de Floriano Peixoto. Bebendo nas águas da democracia francesa, e influenciado pelas idéias de Comte, este presidente da província do RS aplicou uma política econômica na qual o Estado tinha uma forte participação na economia como indutor e regulador. Foi isto que possibilitou o crescimento da burguesia colona, hoje hegemônica no RS (aliás só deixou de ser governo no curto período recente no qual a pequena burguesia assumiu, praticou medidas econômicas que lhe interessava, mas se isolou politicamente).

Rigotto é uma expressão dessa realidade. Uniu várias forças por não ter proposta alguma. É a expressão da decadência e impotência tanto da burguesia gaúcha como da burguesia colona que lhe apoiaram. Aliás estas burguesias se misturaram após a 2ª guerra e, principalmente, com o advento do soja que possibilitou, nos anos setenta, um grande crescimento do sistema cooperativista de produção e, em decorrência, da indústria, serviços e comércio. Foi o auge do Sistema Fecotrigo e, sua decadência com o neoliberalismo o fim do papel vanguardeiro da burguesia riograndense no cenário nacional.

Hoje, gaúcho passou a ser todos os nascidos no Rio Grande do Sul. A bombacha virou moda, e o chimarrão de erva-mate se espalhou. O churrasco da fronteira se misturou com a produção da pequena propriedade e surgiu o Espeto Corrido. Andar pilchado, coisa só possível aos estancieiros, torno-se mania da pequena burguesia. A bela música gaúcha foi substituída pelo nativismo insosso e de conteúdo pobre.

O proletariado gaúcho está disperso em milhares de fábricas e fabriquetas, particularmente após o advento do Soja. Já teve uma consciência classista mais apurada na época das charqueadas e da ferrovia. Já teve em Giuseppe Garibaldi e sua companheira Anita Garibaldi, os precursores de um protagonismo que nunca deveria abandonar.

Dito seja de passagem, Giuseppe Garibaldi está para o século XIX como Che Guevara para o século XX — heróis de continentes. Mas Garibaldi, que terminou sua vida nas fileiras da Internacional de Marx e Engels, esteve em todas as guerras integrado às forças mais avançadas do momento. Fosse no Brasil, na Venezuela ou na Itália, onde comandava os camisas-vermelhas, ou na parte avançada da unificação Italiana. Em uma carta enviada a seu amigo Domingos José de Almeida, datada em Moderna, 10 de setembro de 1859, Garibaldi afirma:

"Eu vi corpos de tropas mais numerosas, batalhas mais disputadas, mas nunca vi, em nenhuma parte, homens mais valentes, nem cavaleiros mais brilhantes que os da bela cavalaria riograndense, em cujas fileiras aprendi a desprezar o perigo e combater dignamente pela causa sagrada das nações. Quantas vezes eu fui tentado a patentear ao mundo os feitos assombrosos que vi realizar por essa viril destemida gente (...) a meus companheiros de armas por mais de uma vez tenho comemorado tanta bravura nos combates quanta generosidade na vitória, tanta hospitalidade, quanto afago aos estrangeiros, e a emoção que minha alma, então, ainda jovem, sentia na presença e na majestade de vossas florestas, da formosura de vossas campinas, dos viris e cavalheirescos exercícios de vossa juventude corajosa (...) Oh! quantas vezes tenho desejado nestes campos italianos um só esquadrão de vossos centauros avezados a carregar uma massa de infantaria com o mesmo desembaraço como se fosse uma ponta de gado!"

Quem quer saber o que é gaúcho deve ler atentamente esta carta de Garibaldi. Trazer para a tela da Globo esta epopéia é de importância transcendental para fazer refletir sobre a construção da Nação Brasileira. Perto disso, é menor o atropelo a fatos, personagens e geografia. Se a autora Maria Adelaide Amaral pensa estar fazendo ficção, como se desprende das palavras de Garibaldi, a vida foi maior. Pouco importa se as moças saem da estância em Pelotas e vão nadar no Itaimbezinho distante 600 km, se as batalhas filmadas na serra aconteceram nos pampas ou se o 20 de setembro virou 10.

Quanto à Anita Garibaldi talvez não tenha surgido ainda uma similar. Esta heroína de dois mundos escreveu com sua vida uma das mais belas páginas que se tem notícia na luta de classes dos últimos duzentos anos. Filha da terra, da luta e da guerra onde vicejou a Revolução Farroupilha, amalgamava em si as melhores virtudes de seu povo. Lutadora consciente, mãe de prole numerosa, sempre ao lado de seu companheiro Garibaldi, se antecipou em quase duzentos anos às tarefas que ainda estão por ser realizadas — a construção de uma Nação Soberana e Democrática, que contemple os interesses de seu povo.

Só levando em conta que Democracia é filha histórica da Nação. E que a primeira leva de formação de Nações se deu no Continente europeu para se livrar da travas feudais; a segunda nas Américas que ficaram a meio caminho; e a terceira na Ásia e África onde já predominava o domínio estrangeiro — para termos condições de entender a Democracia. Agora, além da unidade de idioma, de território, conexão econômica e psicologia comum, temos que acrescentar ao conceito de nação a soberania. Não há democracia sem nação soberana — este o aprendizado do século XX antecipado pela atividade de Anita e Garibaldi. Foram vanguardeiros na formação da Nação Brasileira, Venezuelana e Italiana.

A minissérie a "Casa das Sete Mulheres" possibilita a milhões de brasileiros uma visão mais real do gaúcho do que se pensa. Esses centauros avezados devem estar sorrindo de muita calúnia espalhada a seu respeito. Um sorriso de tranqüilidade de quem sabe que seria muito pior se dissessem a verdade.

Em todas as grandes revoluções (inglesa, francesa, etc), os vivos ressuscitavam os mortos, suas roupagens e bandeiras, para cumprir, no presente, as tarefas necessárias. E normalmente os iam buscar na Grécia e Roma clássicas. O proletariado riograndense tem essa vantagem: pode cumprir suas tarefas no presente, ressuscitando seus próprios mortos, seus centauros avezados e brilhantes navegadores internacionalistas. Pode e deve ressuscitar Anita e Garibaldi e edificar A Casa dos Sete Povos da Missão de Tornar o Brasil Soberano.

*José Vieira Loguercio cursa Ciência Política na UFRGS e é membro do Comitê Estadual do PCdoB/RS

Original publicado em Diário Vermelho


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